Peter Paul Rubens – Briseida devolvida a Aquiles por Néstor ©Museo Nacional del Prado

Rui Estrada
Professor da Universidade Fernando Pessoa

Uma das características do pensamento e da comunicação actuais é o tribalismo exacerbado: havendo muita gente a falar e pouca a ouvir, regra geral tendemos a aceitar e a concordar apenas com as perspectivas veiculadas pelo nosso grupo, pela nossa tribo.
É irrelevante se essas opiniões carecem de evidência: o que as fundamenta e credibiliza, muitas vezes, não é qualquer vestígio de competência, mas um acordo massivo rapidamente assegurado pelo nosso ‘grupo de amigos’.
Somos contra ou a favor do desconfinamento, das comemorações do 1º de Maio, da realização da festa do Avante, do convite de António Costa a Costa e Silva, da presença de adeptos nos estádios, etc., etc.? De facto, nos dias de hoje, não interessa de todo, o que aliás é difícil e dá trabalho, encontrar uma plataforma comum que permita uma discussão racional destes assuntos, mas antes uma tomada de posição, o que quer que isso queira dizer, que ignora olimpicamente qualquer argumento que a possa pôr em causa.
De forma estranha, em democracia, a argumentação, ainda que acerca de assuntos controversos, deixou de ser uma forma para um possível acordo, para se transformar em um exercício tribal, maniqueísta e insultuoso. Nem sequer se pode dizer que se trata de argumentação. Qualquer manual básico sobre o assunto confirmará isso mesmo.
Não se podendo substituir à responsabilidade dos usuários, as redes sociais e muitos meios de comunicação ajudam a esta festa tribal e primitiva.
Com sugerem Samantha North, Lukasz Piwek e Adam Joinson[1]:
“The digital age has exacerbated political tribalism, in part because social media users can easily cluster in echo chambers filled with like-minded individuals. Based on the network effect of homophily, echo chambers increase polarization by diminishing the likelihood of exposure to conflicting viewpoints. This creates tribes, which in turn may have negative effects on social cohesion and the health of democratic societies.” (2019, p. 1)
Como diz a passagem, esta homofilia, esta câmara de eco, diminui a nossa capacidade de exposição a pontos de vista antagónicos. A polarização radical instala-se em muros digitais, criando a ilusão irónica de que continuamos a debater ou a controverter. Pelo contrário, limitamo-nos a falar, apelando à reciprocidade, para os ‘nossos amigos’ de tribo.
Ora, a democracia e a cidadania exigem justamente esta exposição, por mais desconfortável que seja, a perspectivas diferentes das nossas. Só assim passamos da tribo à comunidade, podendo, naturalmente, continuar a argumentar e a discordar.
A literatura e as humanidades em geral são férteis neste indispensável processo de confronto com outras crenças. A título de exemplo, vejamos as primeiras linhas de O Silêncio das Mulheres de Pat Barker[2]:
“O GLORIOSO AQUILES. O fogoso Aquiles, o valente Aquiles, o divino Aquiles…Ah, como se acumulam os epítetos! Nós nunca lhe chamávamos essas coisas; para nós, ele era «o carniceiro».” (2020, p. 13).
O ‘nós’ desta passagem e deste livro são os ‘prémios de guerra’ dos guerreiros gregos. De outra forma: são as mulheres troianas que se tornaram escravas de Aquiles, de Agamémnon e dos seus destemidos companheiros.
São elas, mais concretamente Briseida, ‘troféu’ de Aquiles, que nos contam esta história, que nos contam, enfim, o outro lado desta extraordinária história.
Em suma, as humanidades ensinam-nos isso: o outro lado; não para que abandonemos o nosso, mas para que possamos deflacioná-lo, modalizá-lo, ridicularizá-lo até. O humor é também claramente um antídoto contra a tribo.


[1] Cf. Samantha North, Lukasz Piwek e Adam Joinson. Battle for Britain: Analysing drivers of political tribalism in online discussions about Brexit. 2019.
[2] Cf. Pat Barker, O Silêncio das Mulheres, Quetzal, 2020.

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