Rui Estrada
Professor da Universidade Fernando Pessoa
O primeiro romance de Milan Kundera (recentemente falecido), A Brincadeira, foi escrito em 1965 e publicado originalmente na Checoslováquia em 1967.
Em 1968, antes da invasão russa ter decapitado a Primavera de Praga em Agosto desse mesmo ano, o romance recebeu o prémio da União dos Escritores Checos.
Com a chegada dos soviéticos, A Brincadeira “foi coberta de injúrias no decurso de uma longa campanha de imprensa, proibida (como os meus outros livros) e retirada das bibliotecas públicas.” [1]
Ludvik, um jovem estudante universitário, inicialmente entusiasmado [2] com a revolução comunista de 1948 na Checoslováquia, escreveu um postal privado à namorada Marketa que se encontrava no estágio do Partido. O próprio Ludvik assume que o texto enviado decorria da sua insatisfação por estarem distantes e tinha a intenção de “a ferir, chocar e confundir”: “O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a estupidez. Viva Trotsky!” (p. 38).
Não obstante a natureza privada da comunicação, os vigilantes do Partido tiveram acesso ao conteúdo da carta e censuraram mesmo Marketa por não o ter revelado espontaneamente. (p. 47).
A desgraça de Ludvik foi inelutável: “Marx chamou à religião o ópio da humanidade, mas para ti o ópio é o nosso optimismo! (…) Era bonito saber o que diriam os nossos operários e os nossos trabalhadores de choque que ultrapassam os planos se soubessem que o seu optimismo afinal é ópio (…).” (p. 41).
Ludvik invocou o tom de brincadeira [3] do postal, lembrou a sua fidelidade ao Partido, tentou a autocrítica, mas tudo em vão: foi, por unanimidade, em reunião plenária da Faculdade em que estudava, expulso do Partido e impedido de prosseguir as formação académica. Sem poder beneficiar de qualquer adiamento, incorporou no exército.
Na verdade, a incorporação servia principalmente como um campo de reeducação para os que tinham, de alguma forma, atacado o Partido: não dispunham de armas, visto que eram considerados inimigos, e trabalhavam nas minas. Tinham divisas negras e, por isso, eram conhecidos como os ‘negros’.
Ludvik tem consciência da situação em que se encontra: “(…) compreendi que o fio que me tinha ligado ao Partido e aos camaradas acabava de se partir irrevogavelmente. Eu era projectado para fora do caminho da minha vida.” (p. 56)
Kundera, na ‘Nota do Autor’ referida acima, rejeita uma leitura ‘unilateralmente política’ (p. 306) do romance. E tem razão: as relações de Ludvik com Lúcia (ambos, por razões diferentes, “fora do caminho da vida”) e de Ludvik com os colegas de Faculdade (que o ostracizaram) conduzem a considerações sobre a reparação e o esquecimento que fazem de A Brincadeira um romance fora de qualquer tempo ou circunstância.
Há, para finalizar, um outro pensamento de Ludvik que podemos incluir no que é dito no parágrafo anterior: “E comecei a pensar que a nossa colectividade de negros [os soldados incorporados inimigos do Partido] era capaz de perseguir um homem (enviá-lo para o exílio ou para a morte), tal como a colectividade da sala de outrora [a reunião plenária que o expulsou do Partido], e como talvez todas as colectividades.” (p. 115)
E são tantas as colectividades nos dias de hoje.
[1] Kundera, ‘Nota do Autor’, 1985, pp. 302-303. A edição portuguesa é da Dom Quixote, 1987, com tradução de Helena Vaz da Silva, a partir a versão definitiva do romance revista pelo próprio autor.
[2] Acerca desses primeiros momentos empenhadamente doutrinários de Ludvik, diz o amigo Jaroslav: “Escutando Ludvik, experimentámos um misto de admiração e de antipatia. A sua segurança irritava-nos. Tinha aquele ar que arvoravam então todos os comunistas. Como se ele tivesse, com o próprio futuro, um qualquer pacto secreto que lhe conferisse um mandato para agir em seu nome.” p. 137.
[3] Diz Kostka, colega de Faculdade de Ludvik, em discussão que tiveram mais tarde acerca dos acontecimentos passados: “Quero só dizer que nenhum movimento que pretenda transformar o mundo pode tolerar o sarcasmo e a troça, porque é um ferrugem que corrói tudo.” (p. 232).