Rui Estrada
Professor da Universidade Fernando Pessoa

Conta o Talmude que um “candidato a convertido” foi ter com dois rabinos a quem pediu que lhe ensinassem a “essência da Torá sustendo-se num só pé”. Um dos rabinos desconsiderou-o, mas, Hillel, apoiando-se num só pé, respondeu: “Não faças ao próximo o que não gostarias que te fizessem a ti. Esta é a totalidade da Lei: o resto é comentário.”[1]
A ‘Regra de Ouro’, como é habitualmente conhecida, aparece já, entre outros, formulada no Antigo Testamento, no Levítico (19: 18): “Não tenhas sentimentos de vingança ou de rancor para com o teu próximo; mas ama o teu próximo como a ti mesmo (…). Eu sou o Senhor”. (…)”.
Por sua vez, no Novo Testamento, em Mateus (7: 12) “Façam aos outros tudo o que desejariam que eles vos fizessem. Aqui está o essencial da lei e do ensino dos profetas.” e em Lucas (6: 31): “Façam aos outros como desejam que os outros vos façam.”[2]
É curioso que tenha sido um rabino, Hillel, a dar a resposta acerca da totalidade da Lei e do comentário ao aprendente: na verdade, na tradição judaica, como podemos observar justamente pelo Talmude, o comentário é praticamente infinito.
Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem, mas, caso o faças, no mínimo, pede desculpa, assume o erro. Em excesso de simplificação, este é também um dos princípios do Novo Testamento: o filho pródigo (Lucas 15:11-32) é perdoado, mas antes havia reconhecido a falta, dispondo-se até a ser servo do próprio pai.
Especulando: haveria festa e vitela gorda, o que incomodou inicialmente o irmão mais velho, sem a clara assunção de falha da parte do filho mais novo? Não sabemos.
De qualquer forma, segundo o preceito do rabino Hillel, a possibilidade de o perdão tornar aceitável o incumprimento já é comentário: não se deve fazer aos outros o que não queremos para nós e ponto final.
Mas o que fazer, quando a máxima e um comentário tão mínimo são ambos olimpicamente desrespeitados? Posto de outra maneira: como constituir uma comunidade de humanos se duas das virtudes que a fundamentam, o respeito pelo próximo e a responsabilização do erro, estão ausentes?
É, na verdade, irrealizável e, por isso mesmo, nos dias de hoje confrontamo-nos amiúde, o que é algo paradoxal com o esbatimento de fronteiras reais e virtuais, com o regresso do tribalismo, das bolhas, da polarização, por vezes, assumidos com entusiasmo e gáudio: a minha tribo versus os outros tem um sentido bélico subjacente.
A tribo é o oposto da comunidade e o regresso necessário à segunda precisa da indicação de Hillel ao aprendiz ou, pelo menos, de uma responsabilização pelos erros cometidos.
Parece fácil, mas a emergência, em geografias outrora insuspeitas, de tantos bullies convictos, à esquerda e à direita, deve inquietar-nos seriamente e apelar à resistência: o resto é comentário.


[1] Cit. in Alberto Manguel, Maimónides. Fé na Razão, 2024, p. 194
[2] Passagens retiradas de Bíblia Sagrada, 1993, Difusora Bíblica.

Imagem do topo: Charters de Almeida – Homenagem a um Homem Bom. Museu de Arte Contemporânea Charters de Almeida, Abrantes.

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