As passagens de Paris (1) é, por razões diversas, uma das grandes obras do século XX, um livro mítico, que alguns colocam na mesma constelação do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, ainda que, como observa o tradutor da edição portuguesa, João Barrento, não se trate de um livro. “É um livro que nunca chegou a sê-lo. Deveria ter sido mas não chegou a ser”.
João Barrento explicou, numa entrevista concedida ao semanário Sol (2) que Walter Benjamin pretendia fazer “um grande livro que tentasse uma reconstituição do que foi o processo da cultura e da civilização ao longo do século XIX”. Em vez desse livro, ficou o legado de “uma recolha de leituras e das suas próprias ideias sobre os temas que pensa tratar”. O tradutor afirma que os primeiros textos são escritos em 1927 e 1929. Mais tarde, entre 1934 e 1940 (o ano em que Walter Benjamin se suicida perto da fronteira da França com Espanha, quando tentava escapar aos nazis, que já tinham invadido a França), retoma o projecto, “e continua no mesmo estilo, ou seja, muita leitura na Biblioteca Nacional de Paris, recolha de textos que lhe interessavam, muitas anotações próprias. Alguns capítulos são mais de anotações próprias, outros são mais de recolha de citações de outras obras, nomeadamente o capítulo sobre Baudelaire, um autor que para ele era uma espécie de centro de todo aquele século”.
“As citações são de facto uma matéria-prima, o material prévio a partir do qual ele iria escrever o seu livro sobre o século XIX e Paris”, refere João Barrento, acrescentando que a maneira como Walter Benjamin recolhe aquilo que lhe interessa e vai articulando as citações umas com as outras já é muito reveladora.
As passagens de Paris inclui eloquentes anotações sobre a imprensa. Uma delas indica que “em 1860 e 1868 são publicadas em Marselha e Paris os dois volumes de Revues parisiennes: Les journaux, les revues, les livres, do barão Gaston de Flotte, que se propunham lutar contra a leviandade e a falta de rigor dos dados históricos na imprensa, particularmente nos folhetins. As correcções relacionam-se com factos da história e da lenda, da esfera cultural, literária e política.”
Walter Benjamin tece múltiplas considerações sobre os folhetins. Recorrendo a uma dupla citação, indica que o romance em folhetim foi inaugurado em França pelo Siècle em 1836 e refere a sua “influência benfazeja” nas receitas dos jornais, o que facilmente se comprovava pelo que anualmente ganhou Alexandre Dumas para os escrever. Outra anotação refere um truque do ofício: “Havia honorários para folhetins a 2 francos a linha. Alguns autores escreviam, na medida do possível, apenas diálogos, para tirar proveito dos brancos da linha. As astúcias, aliás, não escasseavam: “Por vezes, na publicação de romances em folhetim, uma parte da obra era excluída, para também o público do jornal a comprar a edição em livro”.
Conhecer factos, anedotas e controvérsias que fazem a arqueologia da imprensa é uma boa razão para a leitura de As passagens de Paris.

(1) Lisboa: Assírio & Alvim, 2019
(2) ‘Benjamin dizia que o século XIX era uma espécie de sonho e o presente era o despertar’. 29 de Abril de 2019

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