Rui Estrada
Professor da Universidade Fernando Pessoa
Plínio o Velho conta que o pintor Apeles (século IV a.c.) tinha o hábito de expor as sua pinturas frente à casa, escondendo-se para ouvir os comentários. Certo dia, um sapateiro, olhando para as sandálias representadas, considerou que tinham poucos cordões.
Apeles aceitou a correcção e voltou a exibir a obra revista. Mais tarde, o mesmo sapateiro fez uma nova observação acerca da representação da perna na pintura. Apeles apareceu subitamente e criticou a ousadia do sapateiro, dado que, desta feita, estava a falar de um assunto de que não era competente. Disse-lhe então: “ne supra crepidam sutor iudicaret”[1], ou seja, “não julgue o sapateiro além da chinela”.
“Não vá o sapateiro além da chinela” ficou como provérbio popular, significando a necessidade imperativa de termos conhecimento para falar, com propriedade, do que quer que seja, justamente o que aconteceu com o sapateiro no primeiro dos comentários que fez acerca da pintura de Apeles.
Em 2013, uma jovem universitária dos Estados Unidos (provavelmente a estudar medicina), a quem teria sido atribuída a tarefa de estudar a substância química Sarin, disse no Twitter que precisava de ajuda para este trabalho, visto que tinha de tomar conta do filho: “I can’t find the chemical and physical properties of sarin gas someone please help me.”[2]
Minutos depois recebeu uma resposta de Dan Kaszeta, “director de segurança de uma empresa de consultoria em Londres e especialista na área das armas químicas (…).” Disponibilizando-se para ajudar, “corrigiu-a dizendo que o Sarin não é um gás e que a palavra devia estar com maiúscula.”[3]
A resposta da estudante foi a seguinte: “yes the (expletive) it is a gas you ignorant (expletive). sarin is a liquid & can evaporate … shut the (expletive) up.”[4]
Kaszeta ainda replicou que era um perito em Sarin e pediu desculpa por ter oferecido ajuda. “As coisas não melhoraram até a conversa acabar.”[5]
Podemos especular acerca do que Apeles diria a esta jovem universitária e a tantos outros humanos que se comportam, nos dias de hoje, exactamente assim.
Talvez mais útil, mas também mais dramático, possa ser a leitura do livro de Tom Nichols intitulado A Morte da Competência. Os Perigos da Campanha contra o Conhecimento Estabelecido. Foi esse livro que conduziu à escrita deste texto.
[1] Cf. Plínio o Velho, Natural History, vol. IX, pp. 323-325, XXXV.84-85, trans. H. Rackham, Loeb Classical Library Cambridge, Mass.: 1984: “Feruntque reprehensum a sutore, quod in crepidis una pauciores intus fecisset ansas, eodem postero die superbo emedatione pristi nae admonitionis cavillante circa crus, indignatum prospexisse denuntiatem, ne supra crepidam sutor iudicaret, quod et ipsum in proverbium abiit”
[2] Cf. George F. Will, An excess of intellectual emptiness, Washington Post Writers Group, https://www.denverpost.com/2017/01/28/an-excess-of-intellectual-emptiness/
[3] Cf. Tom Nichols, A Morte da Competência, 2018, pp. 116-117.
[4] Cf. Cf. George F. Will, An excess of intellectual emptiness, Washington Post Writers Group, https://www.denverpost.com/2017/01/28/an-excess-of-intellectual-emptines.
[5] Cf. Tom Nichols, A Morte da Competência, 2018, p. 117.
No topo: Willem van Haecht – Apeles pintando Campaspe (1630). Mauritshuis, Holanda