A liberdade de expressão era uma prerrogativa que, segundo o que era convencionalmente aceite, oferecia a cada um a possibilidade de comentar factos do modo que melhor se entendesse. Agora, olhando em redor, parece estar instituído algo diverso: a liberdade de expressão concede a cada um o direito de forjar os factos à medida das opiniões que se defendem e se querem ver partilhadas.
Inventar factos não é, todavia, uma novidade. No início da última década do século XV, em Toledo, vários judeus e convertidos foram acusados de assassinar um menino que nunca existiu. Recordando que nunca ninguém deu pela falta de menino algum, nem se encontrou depois qualquer corpo, a historiadora Mercedes García-Arenal, do Conselho Superior de Investigações Científicas de Espanha, contava há tempos ao diário espanhol El País que, em consequência da falsidade, a Inquisição montou “um processo com confissões sob tortura e vários judeus e judeus convertidos foram queimados. Este facto serviu para sossegar as vozes que se levantavam contra a Inquisição e para decretar a expulsão dos judeus”.
Muitos séculos depois, há apenas dois anos, em Bangalore, na Índia, um jovem paquistanês de 26 anos foi acusado por populares de ter raptado uma criança. A incriminação ocorreu no momento em que as televisões locais difundiam a notícia da entrada na Índia de cinco mil paquistaneses sequestradores de crianças. Um vídeo que as autoridades paquistanesas tinham realizado para uma campanha que visava alertar os familiares das crianças que circulam pelas ruas de Karachi para terem cuidado com elas foi truncado e divulgado através do WhatsApp como se se tratasse de uma recente ocorrência local. Pouco depois, as imagens eram usadas como prova contra o rapaz. A acusação era falsa, mas a sentença dos populares foi o linchamento. Na sequência do caso, a polícia de Bangalore pediu que apenas fosse propagada informação cuja veracidade fosse devidamente verificada. No ano anterior, também na Índia, os rumores no WhatsApp tinham sido a causa de múltiplas mortes.
É fatal quando a mentira acciona a crueldade. É perigoso falsificar os factos. O nível de perigo pode não ser idêntico em todo o mundo e em todas as ocasiões, mas o risco existe sempre. A quantidade de notícias falsas que têm circulado a propósito da crise de saúde pública é diluvial. De tal modo que a UNESCO lançou neste início de Maio uma campanha para combater tantas mentiras e evitar o mal que provocam. Em várias línguas, um conjunto de seis anúncios serve para avisar e recomendar: “Protejam-se das mentiras que estão no ar.”, “Não é o momento de tapar os olhos.”, “A verdade nunca deve ser mascarada.”, “Os médicos, as enfermeiras e os factos podem salvar-nos a vida.”, “Os factos imunizam contra o complot-19.”, “Privilegiar os factos é também um gesto protector.”.
Privilegiar os factos, portanto. Se quem redige e publica peças jornalísticas é responsável por verificar a fiabilidade da informação, não menos o é quem a usa politicamente, quem a comenta nos media ou quem a divulga num círculo fechado ou aberto. Todos, de algum modo, são emissores. Todos se devem reportar a factos, vale a pena insistir. Não tangentes aos factos, mas factos. Não propaganda, pessoal ou institucional, mas factos. Não intriga, mas factos. Não rumores, mas factos. Não teorias da conspiração, mas factos. Não tolices, mas factos. Não uma coisa contada por alguém que disse não se sabe exactamente quem que ouviu ou viu não se sabe bem onde, mas factos.