Zygmunt Bauman foi um sociólogo de origem polaca. Morreu em 2017 aos 91 anos. Transformou numa espécie de rótulo a palavra líquida, um conceito que acabaria por ser de aplicação generalizada. Em vez de tudo o que outrora foi sólido, temos agora a liquidez que tudo inunda. Temos “o amor líquido”, “a Europa líquida” ou “os nados líquidos”, para referir apenas três exemplos correspondentes a títulos de obras de Zygmunt Bauman.
Quando morreu, a imprensa referiu que o seu percurso corroborou sua autoridade intelectual. Tinha 13 anos quando a sua família – judia, mas não religiosa – escapa da invasão nazi na Polónia em 1939, onde tinha nascido em 1925, para se refugiar na União Soviética. O jovem Zygmunt Bauman alista-se na divisão polaca do Exército vermelho, o que lhe valeu uma medalha em 1945. Regressa a Varsóvia para ensinar filosofia e sociologia. Milita no Partido Comunista, mas a campanha contra os judeus empreendida, em Março de 1968, pelo regime comunista força-o, uma vez mais, a buscar refúgio no estrangeiro. Deixa a Polónia pela segunda vez. Instala-se primeiro em Israel, em Tel Aviv e, a partir de 1972, em Inglaterra. em Leeds, em cuja universidade lecciona.
Numa das evocações do sociólogo anglo-polaco, foi sublinhado o trabalho que desenvolveu para traçar os contornos da nova geografia do mal. Para Zygmunt Bauman, escreveu Fernando Vallespín no diário El País de 10 de Janeiro de 2017 (1), “o mal já não reside apenas nas guerras ou nas ideologias totalitárias; ele encontra-se arreigado também na indiferença ante o sofrimento dos outros, como na questão dos refugiados, ou nas ‘orgias verbais de ódio anónimo, cloacas virtuais da defecação nos outros e os incomparáveis derrames de insensibilidade’ que encontramos na Internet”.
A Internet e as redes sociais foram temas constantes das reflexões do sociólogo anglo-polaco, encontrando-se omnipresentes nas múltiplas entrevistas que concedeu. Na que foi publicada pelo jornal El País de 9 de Janeiro de 2016 (2), deplorou os sucedâneos de comunidades que são criados pelas redes sociais. Entre a comunidade e a rede social, há uma diferença de monta, diz ele, explicando: “Tu pertences à comunidade e a rede pertence-te a ti”. Nas redes sociais, é possível acrescentar e eliminar amigos e controlar com quem cada um se relaciona. Zygmunt Bauman reconhece que isso ajuda as pessoas a sentirem-se um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nestes tempos de individualismo. Mas a excessiva facilidade com que se podem gerir as relações nas redes sociais torna desnecessário desenvolver a sociabilidade e as respectivas destrezas, as quais são aperfeiçoadas na rua ou no trabalho, quando se encontram pessoas com quem é preciso ter uma interacção razoável, explica Zygmunt Bauman. É aí que é necessário enfrentar as dificuldades, envolver-se em diálogo. Um bom modelo é o Papa Francisco, “que é um grande homem”. Quando foi eleito, deu a primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um ateu assumido. “Foi um sinal: o diálogo verdadeiro não é falar com quem pensa do mesmo modo. As redes sociais não ensinam a dialogar porque permitem facilmente arrumar a controvérsia”.
Muita gente, prossegue Zygmunt Bauman, usa-as não para unir, não para ampliar horizontes, mas, pelo contrário, para se fechar no que é designado por zonas de conforto, onde o único som que se escuta é o eco da própria voz, onde a única coisa que se vê é o reflexo do próprio rosto. Para o sociólogo, “as redes são muito úteis, oferecem serviços muito agradáveis, mas são uma armadilha”.
Noutra entrevista, publicada no diário El Mundo de 7 de Novembro de 2016 (3), Zygmunt Bauman mostra-se ainda mais veemente. Apesar de julgar a Internet uma maravilha tecnológica, considera que ela “não só não te abre a mente, como é um instrumento fabuloso para te fechar os olhos”. Afirma o sociólogo que há algo que não se pode fazer offline, apenas online: “blindar-te em relação aos conflitos”. Na vida real não é possível criar esconderijos artificiais.
A artificialidade também contamina a felicidade. É preciso admitir que há muitas formas de ser feliz, considera Zygmunt Bauman, reconhecendo que há algumas que nem sequer experimentará. O certo, constata ele, é que, seja qual for o lugar que se ocupe na sociedade actual, “todas as ideias de felicidade vão sempre parar a uma loja”. O problema, explica o sociólogo, é que ao ir às lojas para adquirir felicidade, esquecemos que há outras formas de ser feliz, como trabalhar acompanhado, estudar ou meditar.
(1) “Conciencia moral de la globalización”
(2) “Zygmunt Bauman: ‘Las redes sociales son una trampa’”
(3) “Bauman: ‘En el mundo actual todas las ideas de felicidad acaban en una tienda’”
Há diversas obras de Zygmunt Bauman editadas em Portugal, sobretudo pela Relógio d’Água. A quem quiser começar a conhecer o que pensa o sociólogo, recomenda-se Nados líquidos. Transformações do terceiro milénio (2018). Num diálogo com o jornalista Thomas Leoncini, Zygmunt Bauman fala sobre as “transformações na pele” (“tatuagens, cirurgia plástica, hipster”), as “transformações da agressividade” (“bullying”) e as “transformações sexuais (“decadência dos tabus na era do e-commerce sentimental”).
Um dos momentos da conversa serve a Zygmunt Bauman para observar que “a web entrou triunfalmente no nosso mundo prometendo criar ‘um habitat ideal, político e democrático’; mas onde é que ela nos ajudou a chegar? À atual crise da democracia e ao agravamento das divisões e da conflitualidade políticas e ideológicas”. Para o sociólogo, “acolhemos com entusiasmo a promessa da oportunidade de termos uma segunda vida, mas o mundo em que nos inclinamos para levar essa segunda vida é um mundo de cyberbullying e difamação”.