Rui Estrada
Professor da Universidade Fernando Pessoa
No início deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) descrevia as dez principais ameaças para a saúde global. Entre estas, a OMS refere a hesitação em relação à vacinação que ocorre, entre outros motivos, por razões de desconfiança relativamente às vacinas, sobretudo a do sarampo.
No passado mês de Maio, a prestigiada revista BMC Medicine publicou um ensaio, intitulado “The introduction of ‘No jab, No school’ policy and the refinement of measles immunisation strategies in high-income countries”, referindo que países desenvolvidos, como a Itália e a França, face a campanhas dos grupos anti-vacinação, tiveram de introduzir medidas de vacinação compulsória, como o próprio título do artigo indica: “No jab, No school” (“Sem vacinas, não há escola”). (BMC Medicine, volume 17, Article number: 86 [2019]).
Mais recentemente, a OMS voltou a alertar para o declínio global da vacinação, dizendo que é justamente em França que há um maior percentagem de cépticos: “uma em cada três pessoas discorda de que as vacinas são seguras”.
Mas afinal o que move esses grupos, muito activos nas redes sociais, que desacreditam a eficácia da vacinação, sem recurso a qualquer evidência, e que estão a concorrer para um aumento de doenças que estavam controladas ou a caminho de serem erradicadas?
Genericamente, o médico britânico Andrew Wakefield é o campeão destas perigosas campanhas de desinformação.
Tendo escrito um artigo na também prestigiada revista científica The Lancet, em 1998, Wakefield defendeu uma relação causal entre as vacinas do sarampo/rubéola/papeira e o autismo.
Acontece que os argumentos e a tese de Wakefield foram amplamente refutados. Se entrarmos, por exemplo, no sítio da revista The Lancet, directamente no ensaio de Wakefield (link acima), verificamos que a palavra “RETRACTED”, escrita exactamente a vermelho e em maiúsculas, aparece, mais do que uma vez, em todas as páginas do ensaio. O significado é claro: o artigo foi retirado por falta de evidência, procedimentos errados e manipulação de resultados [1].
Também o jornal português de fact-checking, Polígrafo, num artigo intitulado “As quatro maiores fake news colocadas a circular pelos movimentos anti-vacinas”, de 14 Maio/2019, dá esta informação sobre o médico inglês (negrito meu):
“O rumor: vacina contra o sarampo e a rubéola provoca autismo: num artigo publicado em 1998 no prestigiado jornal médico The Lancet, o cirurgião britânico Andrew Wakefield argumentava que a vacina contra sarampo e a rubéola estaria na origem do aumento de casos de autismo entre crianças britânicas. Os seus argumentos foram “adoptados” pelo adeptos da não vacinação, e ainda hoje, mais de 20 aos depois são utilizados.
A verdade: uma série de estudos publicados desde então tem refutado a existência de uma relação de causa e efeito entre a vacina e o autismo. O The Lancet retirou mesmo o estudo dos seus arquivos e em 2010 foi retirada a Wakefield a licença para exercer medicina no Reino Unido. Actualmente vive nos EUA, onde é uma das principais figuras do movimento anti-vacinas.”
Em suma, não é por falta de informação, fundamentada e com evidência sobre o assunto, que as campanhas anti-vacinação têm, infelizmente, cada vez mais adeptos. O motivo tem de ser outro: nos nossos dias estamos, imprudentemente, a recusar a evidência e o conhecimento. Não só sobre as vacinas, mas igualmente sobre outras áreas: por exemplo as alterações climatéricas.
O risco é enorme: a História mostra-nos que, não obstante poderem ser usados para fins assaz reprováveis, o conhecimento, a evidência e a cidadania crítica foram, e são, indispensáveis à nossa condição de humanos. Que o diga Galileu que, com toda a legitimidade, pôde dizer, mau grado o braço ameaçador do tribunal inquisitorial: “E pur si muove!” E era e é verdade.
[1] Ver no site da própria revista a discussão em torno deste caso.
NR: O Le Point publicou anteontem, citando o BuzzFeed, a notícia “À New York, les enfants non vaccinés ne peuvent plus aller à l’école“.
Imagem do topo: Harvey Georges/AP (1954)