Rui Estrada
Professor da Universidade Fernando Pessoa

1 – Amanda Gorman, jovem poetisa negra, leu, na tomada de posse de Joe Biden, o seu poema The Hill We Climb. O momento foi único[1] e rapidamente a performance e a mensagem de Gorman correram o mundo.

Na tradução de Raquel Lima, investigadora em Estudos Pós-Coloniais e também negra, lemos estas luminosas passagens do poema A Colina que Subimos:

“Quando amanhece, perguntamo-nos
‘onde encontrar luz nesta interminável sombra?’
A perda que carregamos, um mar para vadear.
Enfrentámos a barriga da besta.
Aprendemos que sossego nem sempre é paz,
e as normas e noções do “justo” nem sempre são justiça.
Porém, a aurora é nossa antes de sabermos.
De alguma forma a fazemos.
De alguma forma resistimos e testemunhamos
uma nação que não está falida, mas simplesmente interrompida.
Nós, os herdeiros de um país e de um tempo, onde uma miúda negra magricela descendente
de escravizados e criada por uma mãe solteira pode sonhar em tornar-se presidente, e logo
ver-se a declamar para um.”

E já na parte final:

“Então deixemos para trás um país melhor do que aquele que nos deixaram.
Com cada sopro do meu peito socado a bronze,
nós elevaremos este mundo ferido a um mundo maravilhoso.
Nós nos levantaremos das colinas douradas do Oeste.
Nós nos levantaremos do nordeste varrido pelo vento,
onde os nossos antepassados fizeram a primeira revolução.
Nós nos levantaremos das cidades à beira dos lagos de Midwest.
Nós nos levantaremos do Sul escaldado pelo sol.
Nós vamos reconstruir, reconciliar e recuperar.”[2].

Captura de ecrã da conta do Twitter de Marieke Lucas Rijneveld

2 – Marieke Lucas Rijneveld, de 29 anos, venceu o prestigiado Booker International, em 2020, com a obra de estreia The Discomfort of Evening. O livro, que será publicado este ano em Portugal pela Dom Quixote, fala-nos da dor e do luto a propósito da morte do seu irmão.

Foi a esta jovem e talentosa escritora que a editora holandesa Meulenhoff solicitou a tradução do poema de Gorman para holandês. Rijneveld aceitou, dizendo: “Numa altura de crescente polarização, Amanda Gorman evidencia na sua jovem voz o poder da spoken-word, o poder da reconciliação, o poder de alguém que olha para o futuro em vez de olhar para baixo”. Quando surgiu o convite para a tradução só pude dizer ‘sim’ e apoiá-la”[3].

3 – Zaïre Krieger, activista e artista holandesa, manifestou no Twitter, em 23 de Fevereiro, a sua posição acerca da escolha de Rijneveld como tradutora: “How salty on a level from one to the Dead Sea am I going to sound when I say that tons of female spoken word artists of color (Babs Gons, Lisette Maneza etc.) could have done this better?”[4] A mensagem disseminou-se rapidamente entre os seguidores de Krieger.

4 – Janice Deul, activista e jornalista holandesa, escreveu, no jornal de Volkskrant a 25 de Fevereiro, um artigo de opinião, intitulado Uma tradutora branca para a poesia de Amanda Gorman: inacreditável, no qual se insurge também contra a escolha da tradutora pela Meulenhoff: “Why not choose a writer who is—just like Gorman—a spoken word artist, young, female, and unapologetically Black?”[5].

5 – Marieke Lucas Rijneveld, face à controvérsia, desistiu deferentemente da tradução: “Manifestando-se “em choque pelo tumulto” em torno do seu envolvimento “no acto de espalhar a mensagem de Amanda Gorman”, Rijneveld disse ainda assim que compreende “as pessoas que se sentem feridas pela decisão da Meulenhoff” de lhe entregar a tradução.”[6]

6 – Patrícia Reis, jornalista, em artigo de opinião, diz o seguinte: “(…) neste caso da tradução do poema de Amanda Gorman, parece que a opinião de uma jornalista, Janice Deul, — a moça que levantou a questão alegando a existência de muita consternação nas redes sociais (ai que medo!) —, tem mais peso do que o bom senso. E parece-me também a escritora holandesa não esteve para se chatear. É pena.”[7]

Permitam-me, por fim, interromper esta história de personagens femininas, algumas mais notáveis do que outras, para perguntar o seguinte: seguindo a lógica de Zaïre Krieger, Janice Deul e seguramente mais humanos, eu, branco masculino, heterossexual, europeu e eurófilo, poderei continuar a dar aulas a pessoas de outro género, de outra sexualidade e de outra etnia?

Foi nesta caricatura, bizarra e acéfala, que se transformaram as justas e muito difíceis lutas pelos direitos civis das minorias dos anos 60?


[1] Cf. https://www.nytimes.com/2021/01/19/books/amanda-gorman-inauguration-hill-we-climb.html

[2] Cf. https://www.casafernandopessoa.pt/pt/cfp/colina-que-subimos-por-amanda-gorman

[3] Cf. https://www.publico.pt/2021/03/03/culturaipsilon/noticia/traducao-branca-poesia-autora-negra-polemica-holandesa-amanda-gorman-1952866

[4] Cf. https://lithub.com/everything-you-need-to-know-about-the-controversy-over-a-new-translation-of-amanda-gormans-poetry/

[5] Cf. https://lithub.com/everything-you-need-to-know-about-the-controversy-over-a-new-translation-of-amanda-gormans-poetry/

[6] Cf. Cf. https://www.publico.pt/2021/03/03/culturaipsilon/noticia/traducao-branca-poesia-autora-negra-polemica-holandesa-amanda-gorman-1952866

[7] Cf. https://24.sapo.pt/opiniao/artigos/discriminacao-afinal-e-politicamente-correcta-haja-paciencia

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *