Rui Estrada
Professor da Universidade Fernando Pessoa

Quando o ditador espanhol Franco morre, em 20 de Dezembro de 1975, o Rei Juan Carlos, que fez a transição para a democracia, decidiu sepultá-lo no monumental Vale dos Caídos.
Pensado, e inaugurado, pelo regime franquista, a 1 de Abril de 1959, 19 anos depois do início da construção e no 20.º aniversário do fim da sangrenta guerra civil espanhola, Vale dos Caídos desde sempre ficou associado, mesmo antes de Franco lá ter sido enterrado, à consagração da vitória dos nacionalistas na luta fratricida de 1936/39.
De facto, essa vinculação é óbvia: logo em 1959, o falangista e ideólogo do regime, José Antonio Primo de Rivera, executado pelos republicanos nos primeiros meses da guerra, é trasladado para Vale dos Caídos. As palavras de Franco, quando decretada, em 1940, a construção do monumento e depois na inauguração são igualmente límpidas a este respeito: Vale dos Caídos seria feito para “perpetuar a memória dos que caíram na nossa gloriosa cruzada” e alude àquilo que “não foi, evidentemente, só mais uma contenda civil, mas uma verdadeira cruzada” (1).
No passado dia 24 de Outubro, os restos mortais de Franco, por decisão do governo espanhol de Pedro Sánchez, saíram finalmente de Vale dos Caídos e foram para o cemitério de El Pardo, em cerimónia não oficial. As exéquias permitiram ver como os admiradores de Franco ainda estão bem activos na Espanha dos dias de hoje.
É justamente de restos mortais de que também fala o documentário O Silêncio dos Outros (2018), produzido pelo cineasta Pedro Almodóvar e realizado por Almudena Carracedo e Robert Bahar.
Neste belíssimo e comovente documentário, que tem em contexto a controversa Lei da Amnistia (2), os realizadores seguem, por um período de seis anos, algumas da vítimas do franquismo que reclamam justiça ou, mais simples mas mais perturbador, reclamam a possibilidade de sepultar dignamente os seus familiares, assassinados e atirados para valas comuns pelo regime franquista.
O documentário começa com a extraordinária mulher María Martín, de idade avançada, que acaba por morrer no decurso das filmagens.
Vivendo no pueblo de Pedro Bernardo, fala da sua amargura: “Tinha seis anos quando levaram a minha mãe. Gente da aldeia, apoiantes de Franco. Encontraram-na no dia seguinte, na berma da estrada. Não puderam levá-la para o cemitério. O povo da aldeia não os deixou. Era aqui que os enterravam. Isto era a vala comum.” (Cf. documentário O Silêncio dos Outros).
Mais à frente, em tom que evoca a famosa tragédia Antígona de Sófocles, acrescenta: “Se conseguires [pediu-lhe o pai], um dia tenta recuperar os restos mortais dela e traz-mos. Não peço vingança. O que quero são os restos dela. Para enterrá-la com o marido. Mais nada. É tudo o que peço.” (Cf. documentário O Silêncio dos Outros).
Infelizmente María Martín nem isto conseguiu; morreu sem dar à mãe a sepultura que queria. Como diz a filha, María Ángeles Martín, que continua agora a demanda: “Partiu sem obter tudo aquilo por que lutou. Queria estar ali junto aos restos mortais da mãe.” (Cf. documentário O Silêncio dos Outros).
E tudo o que María Martín queria “obter” era afinal tão menos do que o Vale dos Caídos ou mesmo o cemitério de El Pardo. Tão menos e tão mais nobre.

(1) Cf. Manuel Louro, ‘‘Vale dos Caídos, o lugar que Franco criou ‘para recordar aos vencidos que foram vencidos’”. Público, 15 de Setembro de 2018.
(2) A Lei da Amnistia, aprovada pelo parlamento espanhol, em 1977, já em democracia, estabelece “um pacto de silêncio” sobre o regime de Franco. Como foi dito à altura: “É simples esquecimento, uma amnistia de todos para todos, um esquecimento de todos para todos.” (Cf. documentário O Silêncio dos Outros). É esta lei, que ainda hoje vigora em Espanha, que tem impedido a investigação e punição dos crimes do franquismo.

Imagem do topo: María Martín no documentário O Silêncio dos Outros, de Almudena Carracedo e Robert Bahar

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