O início de cada ano lectivo é invariavelmente assinalado nos media com notícias, reportagens ou entrevistas assaz expectáveis. Alunos e professores seguirão, depois, caminho, encontrando-se e desencontrando-se. Se não houver notícias, é, em princípio, um bom augúrio. Havendo, por regra, sinalizam uma greve (que nunca é um espelho de contentamento), um caso de violência escolar ou, enfim, os rankings. As questões relacionadas com ensinar e aprender raramente merecem atenção. As polémicas ensombram as questões mais significativas. É assim em Portugal e em outros países.
Em França, o ano lectivo começou com uma daquelas controvérsias em que o hexágono é fértil. O diferendo, desta vez, nasceu com a proibição governamental do uso nas escolas de abaya, que é mais um vestido tradicional do que o símbolo religioso pretextado para a interdição. Mas um outro assunto, menos espalhafatoso e mais relevante, justificou a apelativa e inesperada manchete do diário Le Monde datado de 6 de Setembro: a imperiosa necessidade de promover “uma verdadeira cultura da leitura e da escrita” (« M. Gabriel Attal, redonnez à l’écrit, dès l’école primaire, ses lettres de noblesse »).
O destaque impôs-se por causa de uma carta de escritores, filósofos, psiquiatras, professores, cantores, rappers, actores e jornalistas endereçada ao ministro da Educação a instá-lo a algo não particularmente complexo: devolver à escrita um lugar central na escolaridade básica e secundária.
Dizendo serem “pais e avós tristes e indefesos”, “cidadãos irritados, mas combativos”, os signatários começam por assinalar uma constatação perturbadora: “Uma grande parte das nossas crianças já não lê e tem dificuldade em escrever”.
Inquietos com as crianças e os adolescentes, a geração para a qual apenas há ecrãs e, em breve, inteligência artificial (IA), os subscritores constatam a conjunção sem precedentes de três grandes fenómenos, cujos “efeitos explosivos”, nos próximos anos, ainda não se anteciparam: “A degradação do nível escolar da escrita e da leitura; a omnipotência dos ecrãs nos cérebros dos jovens, em relação à qual cientistas, profissionais da infância e professores vêm alertando há anos; a expansão fulgurante da IA que, amanhã, corre o risco de pensar por nós”.
Os signatários constatam algo que deveria ser óbvio, “saber escrever não é apenas juntar frases, mas dar sentido ao que se escreve. Este sentido que todos procuramos e de que tanto necessitam as crianças de hoje, sujeitas a múltiplas injunções contraditórias, num mundo volátil, virtual e ilegível para elas”.
Ou seja: “Aprender a escrever é aprender a pensar, a estabelecer ideias próprias, a comunicar, a emancipar-se. A desenvolver o pensamento crítico. É estar presente, inventar um mundo interior. É ser capaz de se conectar consigo mesmo e com os outros por meio de palavras”.
Os subscritores do apelo educativo formulam uma questão: “O que acontecerá amanhã se estas noções essenciais para a fundação de cada ser humano, de cada sociedade, de cada civilização forem minadas?” A resposta, acrescentam, todos a sabem e é a que os inquieta: “a violência, as fracturas sociais alimentam-se da ausência de palavras, de pensamento. E os extremos, tão ameaçadores hoje, alimentam-se da violência”, sendo certo que “muitos professores resistem, testemunhando uma fé inalterável”.
Perante “estes jovens, cujas palavras são tão flutuantes, tão angustiantes e tão profundas, por muito pouco que as escutemos”, emerge um dever: o de lhes deixar, “além de um mundo habitável, o fundamento e a reflexão necessários, em vez de os deixar perderem-se atrás dos ecrãs que é necessário aprender a usar de modo consciente”. Citando Apollinaire, consideram que “já é hora de voltar a iluminar as estrelas”.
O texto termina com um caderno de encargos para o ministro. “A partir do ensino básico, crie um tempo obrigatório de trinta minutos por dia para a escrita criativa ou a expressão livre (escrever uma carta, uma história de ficção científica, um livro, um discurso, um diário, um poema, uma peça de teatro, uma série de televisão, caligramas, um programa de rádio, etc.). Faça as crianças participarem em projectos que sejam significativos e divertidos para elas. Proporcione tempo aos alunos e aos professores. Incentive pequenos grupos a aprender a escrever. Faça com que mais palestrantes entrem nas escolas (filósofos, cientistas, jornalistas, artistas, etc.), e especialmente no ensino secundário, para apoiarem os professores e desenvolverem com eles o pensamento crítico, hoje tão indispensável. Amplie a educação para os media. Apoie iniciativas fora da escola, as associações. Mantenha um verdadeiro discurso político sobre os abusos dos ecrãs”.
A lista de signatários – são mais de sete dezenas – inclui nomes conhecidos do cinema (Isabelle Carré, Jamel Debbouze, Irène Jacob e Agnès Jaoui), da literatura (Tahar Ben Jelloun, Brigitte Giraud, Véronique Olmi, Daniel Pennac e Eric-Emmanuel Schmitt), da música (Grand Corps Malade, Raphael e Renaud), da filosofia (Elisabeth Badinter e Cynthia Fleury), da história (Pierre Nora), da psiquiatria e psicanálise (Boris Cyrulnik), da sociologia (Edgar Morin) e da religião (Delphine Horvilleur, rabina, e Matthieu Ricard, monge budista).
Manifestando-se “realistas”, consideram que este trabalho não se faz sem a revalorização dos recursos atribuídos prioritariamente à educação. Desde logo, é preciso mais professores e menos alunos por turma. Não querendo paliativos, pretendem “uma verdadeira cultura da leitura e da escrita, acompanhada pela utilização inteligente das novas tecnologias”.
O pedido é urgente. “Ajudemos as nossas crianças e os nossos jovens a adquirirem um pensamento autónomo, humano, empático, estruturado e livre”. O essencial é forjar “um espírito de resistência através das palavras, destas palavras que servem para construir valores comuns que têm o nome de tolerância, curiosidade, alteridade, sem os quais, amanhã, o pensamento será vazio”. O texto termina com uma interrogação sobre se essa vacuidade pode ser consentida.
Não é, evidentemente, apenas em França que é imprescindível a resposta política certa.

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