Circulou por todo o mundo uma fotografia fabricada com recurso à Inteligência Artificial. Mostra o Papa Francisco como um “ícone da moda”. Citada pela Rádio Renascença, a modelo Chrissy Teigen afirmou: “Pensei que o kispo puffer do Papa era real e não duvidei por um segundo sequer. Não estou preparada de maneira nenhuma para sobreviver ao futuro da tecnologia”

A fotografia que o diário espanhol El Mundo publica na página 4 da edição de 4 de Abril é insólita: os dois políticos que se vêem de braço dado a caminhar na rua são de campos políticos opostos, um, Pablo Iglesias, é de extrema-esquerda, o outro, Santiago Abascal, é de extrema-direita – atendendo ao grau de crispação em Espanha, seria menor a estranheza se, em Portugal, um jornal divulgasse um indício de cumplicidade entre Catarina Martins e André Ventura.
A inusitada fotografia é, todavia, falsa. Quem a olha não encontra qualquer elemento que suscite dúvidas sobre a respectiva autenticidade. Uma ligeira imperfeição poderia provocá-la. O certo é que nada se nota de anormal. Razão alguma justificaria, pois, que se questionasse a veracidade do que é dado a ver.
O diário espanhol publica mais duas fotografias falsas de outros encontros improváveis. Num deles, o chefe do governo, Pedro Sánchez, e o líder da oposição, Alberto Núñez Feijóo, mostrando uma grande cumplicidade, riem-se ao balcão de um bar. Não é necessário ser um especialista em política espanhola para ficar surpreendido perante tamanha convivialidade.
O propósito do jornal não é enganar (cada imagem faz-se, aliás, acompanhar de uma advertência inequívoca), mas apenas ilustrar um destaque sobre a Inteligência Artificial e a sua utilização para gerar fotografias cuja falsidade não é detectável. O título da primeira página, aliás, refere essa problemática circunstância: “O grande desafio da Inteligência Artificial: ‘Será impossível distinguir verdade e mentira’”.

Recentemente, circulou por todo o mundo outra fotografia enganadora, também fabricada com recurso à Inteligência Artificial. Mostra o Papa Francisco como um “ícone da moda”, envergando um casaco puffer branco. Citada pela Rádio Renascença, a modelo Chrissy Teigen afirmou: “Pensei que o kispo puffer do Papa era real e não duvidei por um segundo sequer. Não estou preparada de maneira nenhuma para sobreviver ao futuro da tecnologia”.
Estes exemplos de falsificações de imagens poderiam ser relativamente benignos. Uma harmonização de extremos políticos e uma modernização indumentária não adicionariam mal ao mundo. O certo é que nem tudo é cor-de-rosa no universo das imagens – fotografias ou vídeos – geradas com recurso à Inteligência Artificial.
A actriz Emma Watson, que desempenha, no cinema, o papel de Hermione Granger, personagem de Harry Potter, apareceu, no início de Março, como protagonista de vídeos falsos com conteúdo sexualmente explícito que tiveram uma ampla difusão no Facebook e no Instagram, noticiou a NBC. O que, neste caso, é particularmente bizarro é que as imagens se destinavam a publicitar uma aplicação que serve para fabricar vídeos falsos. O isco é tanto mais deplorável quanto se sabe que é enorme a quantidade de vídeos pornográficos falsos postos a circular com propósitos vingativos.
O progresso da Inteligência Artificial tem tornado cada vez mais acessíveis as ferramentas que permitem a edição de imagens falsas absolutamente verosímeis, o que, inevitavelmente, concorrerá para um acréscimo de mentira no espaço público. “A qualidade da verdade vai decrescer de maneira rapidíssima e isso eliminará de forma sistemática o pensamento crítico e representará um dano enorme para a democracia”, afirma Ulises Cortés, director do grupo de investigação de Inteligência Artificial de Alto Rendimento do Centro Nacional de Supercomputação de Barcelona, um dos especialistas que o jornal El Mundo escutou. Considerando que, “em breve, será impossível saber o que é verdade e o que é mentira…”, o académico não evita a partilha de uma dúvida: “hoje a quem é que interessa a verdade…” Sim, a quem é que interessa? Ou ainda: como é que uma comunidade pode funcionar sem a confiança que se funda no respeito pela verdade?

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