Presentemente em exibição na RTP2, e disponível na RTP Play, a série O Escândalo dos Correios – Mr Bates vs The Post Office, no título original – oferece uma eloquente lição sobre as consequências trágicas que podem advir quando se acredita na tecnologia como remédio para tudo.
A história era, até há pouco, quase desconhecida. Terá começado antes do fim do século XX e prolongar-se-ia pela primeira década e meia do século seguinte. Durante este período, muitos chefes de postos de correio britânicos localizados em pequenas cidades ou em áreas rurais [1] foram sendo acusados de roubo, fraude e falsificação de contabilidade financeira. As incriminações eram simples e iguais: tinham subtraído dinheiro das contas bancárias dos postos de correio que dirigiam. As condenações, que atingiram muitas centenas de pessoas, chegaram a provocar, em casos extremos, suicídios ou, nos casos mais comuns, penalizações variadas, incluindo a prisão, e, evidentemente, o enxovalho público.
A BBC recordou no dia 15 de Janeiro os dias dramáticos vividos pelos chefes de postos de correio. As contas que faziam no papel estavam certas, mas o sistema informático assinalava a existência de grandes défices. Como sabiam da existência de uma cláusula no contrato especificando que eram eles os responsáveis por qualquer desaparecimento de dinheiro, ficavam alarmados. Os telefonemas para a assistência técnica não os sossegavam. A cada um era dito que não havia outros relatos de problemas idênticos. Cada um estava sozinho no seu incómodo. O problema colectivo acabava transformado em sarilho individual. A alternativa era sempre má: “pagar o défice em dinheiro imediatamente ou enfrentar um julgamento com alta probabilidade de acabar na prisão” [2].
O caso foi amplamente falado no início do ano porque o então primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, foi instado a anular as sentenças condenatórias dos chefes de postos de correio do seu país [3]. A resolução surge justificada por ter ficado comprovado que houve uma tremenda injustiça. A culpa de tudo era, afinal, da informática (dos informáticos ou dos chefes dos informáticos, conforme se preferir): um sistema de software desenvolvido pela empresa japonesa Fujitsu fornecia dados incorrectos sobre facturação. A miraculosa e inquestionável informática tinha a responsabilidade por aquilo que Rishi Sunak considerou como um dos maiores erros judiciais da História do Reino Unido.
A resolução do primeiro-ministro do Reino Unido foi acelerada pela exibição televisiva da série O Escândalo dos Correios (e, claro, pela circunstância de ser ano de eleições gerais que Rishi Sunak perdeu). Transmitida no início de Janeiro pelo canal britânico ITV, em quatro episódios, a história de Alan Bates, o chefe de posto de correio protagonista de uma campanha contra a injustiça, foi vista por nove milhões de espectadores. A BBC notava que a série, ao tornar evidente a magnitude do escândalo, provocou uma tão viva indignação que permitiu que se alcançasse rapidamente algo que não tinha sido possível lograr ao longo de décadas de reclamações e protestos [4].
Citado pela BBC, o actor que interpreta Alan Bates, Toby Jones, aproveitou para fazer uma profissão de fé no valor duradouro da arte dramática no progresso da consciencialização pública e dos debates nacionais. Uma série televisiva ficou, portanto, com o crédito de ter fornecido o suplemento de empatia necessário para suplantar os muitos anos de indiferença – cumulada de cinismo em alguns casos – que nem a persistência do Senhor Bates contrariou.
A história dos chefes de postos de correio “é um drama real de vidas destruídas pelo mau funcionamento de apenas um programa de software e pela cultura tóxica de uma empresa pública que deveria ter estado mais vigiada”, assinalava Marta Peirano a 15 de Janeiro, no diário espanhol El País [5]. A jornalista usava avisadamente o caso para incentivar a que se ponderassem as consequências reais de introduzir “soluções opacas” para modernizar infra-estruturas sanitárias, educativas, financeiras e administrativas “num contexto político incentivado por uma forte exuberância tecnológica e pouco sentido de responsabilidade”.
A reflexão, como adverte ainda a jornalista, torna-se particularmente pertinente num momento em que a Inteligência Artificial se apressa a entrar em estabelecimentos de ensino, administração central e local, tribunais, centros de saúde e outros serviços críticos, substituindo o que aí mais falta faz: “melhores condições de trabalho e mais pessoal”.
Precisamos de menos deslumbramento pela tecnologia e mais respeito pelas pessoas.
[1] Conhecidos em inglês como subpostmasters, são parceiros de franquia ou proprietários de empresas independentes.
[2] e [4] “Post Office: como série de TV gerou indignação sobre um dos maiores escândalos do Reino Unido”. BBC, 15 de Janeiro de 2024
[3] Peter Walker, Daniel Boffey e Rowena Mason – “Horizon scandal: hundreds of post office operators to have convictions quashed”. The Guardian, 10 de Janeiro de 2024
[5] Marta Peirano – “El escándalo Post Office: tecnología opaca al servicio del poder”. El País, 15 de Janeiro de 2024
Nota: Uma primeira versão deste texto foi publicado no 7 Margens.