Detalhe da ilustração de Andrea Ucini que acompanha o texto “Notícias a cântaros

A coluna de um escritor é, amiúde, a principal – e, por vezes, a única – razão para a compra regular de um jornal. Mesmo quando não têm abundantes leitores das suas obras literárias, escritores há que conquistam uma audiência significativa que acompanha fielmente a prosa jornalística. A lista de escritores com colunas na imprensa é vasta. Claudio Magris, no diário italiano Corriere della Sera; Elvira Lindo, Javier Marías, Juan José Millás, Antonio Muñoz Molina, Rosa Montero, Manuel Vicent e Enrique Vila-Matas, no espanhol El País; José Rentes de Carvalho, Francisco José Viegas e Rui Zink, no Correio da Manhã, são alguns dos que, presentemente, se podem ler com uma periodicidade regular, maioritariamente semanal.
Convidada pelo diário britânico The Guardian, Elena Ferrante tornou-se também uma colunista de imprensa. O resultado do trabalho jornalístico encontra-se no livro A invenção ocasional. A obra, ilustrada por Andrea Ucini, foi traduzida por Miguel Serras Pereira. A edição portuguesa é da Relógio d’Água.
Elena Ferrante explica no texto inaugural como nasceu a experiência: “No Outono de 2017, o Guardian propôs-me que escrevesse para as suas páginas uma coluna semanal. Senti-me lisonjeada e, ao mesmo tempo, assustada. Nunca fizera uma experiência desse género e receava não ser capaz. Depois de muitas hesitações, fiz saber à redacção que aceitaria a proposta se me fosse enviada uma série de perguntas, a cada uma das quais, por sua vez, eu responderia respeitando os limites do espaço que me fosse fixado.”
A invenção ocasional colige cerca de cinquenta crónicas sobre assuntos diversificadíssimos, cada um com uma ilustração específica, escritos semanalmente entre 20 de Janeiro do ano passado e 12 de Janeiro deste ano. A autora explica que o ponto de vista que ditou os textos foi o da “autora de romances”, que aborda temas que lhe são importantes e que deseja, depois, aprofundar “através de dispositivos narrativos propriamente ditos”. Esclarece Elena Ferrante que, ao contrário do que sucede com as narrativas literárias, estas crónicas, que têm a natureza de “invenções ocasionais”, não beneficiam do tempo longo, adequado ao processo “de aprofundamento, de reescrita, de extensão ou de meticulosa secagem”.
Entre as questões abordadas não se encontra o “sentimento da desigualdade”, diz Elena Ferrante, considerando que seria excessivo retomá-lo por a ele já ter dedicado o seu livro mais recente. As poucas linhas destinadas a justificar a exclusão do tema são, todavia, suficientemente eloquentes quanto à relevância que a escritora lhe concede: “Tudo, devo dizer, me preocupa nos tempos que correm, mas que grande parte do género humano, crianças, mulheres, homens, sofra de múltiplos modos os efeitos da desigualdade parece-me o núcleo de todas as questões que nos afligem. Sobretudo, a desigualdade engendra uma extraordinária delapidação de inteligências e de energias criadoras, que provavelmente, se fossem educadas e mobilizadas, fariam da nossa história já não um rol insuportável de horrores, mas o mais activo dos laboratórios em vista da reparação dos estragos que até aqui causámos, ou pelo menos do controle dos seus efeitos”.
Sobre a informação e a verdade escreve Elena Ferrante um instrutivo texto, intitulado “Notícias a cântaros”. Observando que o sistema de informação “impõe aos cidadãos uma espécie de caos informativo, uma condição em que, quanto mais nos informamos, mais nos confundimos”, considera que a tarefa que a ela se lhe impõe não é “estar informadíssima”, mas “detectar na massa inutilmente dilatada das notícias” as que lhe sirvam “para distinguir a tempo o verdadeiro e o falso, o melhor e o pior”. “Tarefa dificílima”, reconhece, manifestando a seguir admiração pelos que, “na desordem que é própria de todo o presente”, souberam identificar à nascença os perigos do fascismo e do nazismo e os denunciaram corajosamente. “Mas seremos ainda capazes de sermos sentinelas que vêem longe? Existirão condições para vermos longe?”
Elena Ferrante não oferece uma resposta directa, mas admite que pode ser a literatura e não o jornalismo a fazer o que importa: “Os romances, quando funcionam, servem-se de mentiras para dizer a verdade. O mercado da informação, na sua guerra em torno das audiências, tende cada vez mais a transformar as verdades mais insuportáveis em romanescas, apaixonantes, gratificantes mentiras”. Preciosa lição, que não é de pouca monta deixar registada nas páginas de um jornal.

Outros livros de crónicas

A Relógio d’Água editou igualmente dois excelentes livros de crónicas de Javier Marías, Juro não dizer nunca a verdade (2018) e Quando os tontos mandam (2018). Recolhem, cada um, cerca de cem textos publicados na revista dominical do diário El País entre Fevereiro de 2013 e Fevereiro de 2015 e entre Fevereiro de 2015 e Janeiro de 2017.
Uma leitura recomendável é também, já agora, o livro Todas as crónicas (2018), de Clarice Lispector, que reúne todos os textos jornalísticos da autora. A edição é também da Relógio d’Água. A breve lista de sugestões de livros de crónicas não pode deixar de incluir, ainda que seja menos recente, Por outras palavras & Mais crónicas de jornal (Porto: Modo de Ler, 2012), de Manuel António Pina.

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